A professora
Marilúcia estava nos contando algo sobre a família real no Brasil que deve ter
sido muito engraçado, porque todos começaram a rir. Foi quando eu me dei conta
que estava com o braço levantado e a professora chamando meu nome:
- O que foi,
Letice?
- 'Prof', por
que Napoleão queria terras que já pertenciam a alguém?
- Para aumentar
seu poder e trazer mais riqueza para a França, querida.
- E ele não se
importava com as pessoas que estavam vivendo lá? Se elas gostariam de pertencer
a outro país?
- Na realidade
não, geralmente os impérios não são baseados na vontade do povo, mas no desejo
de um pequeno grupo que pode ser governante ou não. Esse grupo, por razões
políticas ou econômicas, decide que um local é importante e decide agregá-lo.
- Só que as
pessoas morrem para que isso não aconteça. Não seria mais fácil perguntar a
elas se gostariam que suas...hmm, suas propriedades se tornassem parte do
império francês? Ninguém precisaria morrer. Eu pediria aos meus pais para nos
tornarmos franceses se ninguém fosse morrer por isso. - vi a expressão de
confusão se formando no rosto da professora - Que mal haveria me tornar parte
do império francês?
Todo mundo tinha
ficado em silêncio na sala, sei que alguns nem estavam prestando atenção ou
entendendo minha dúvida. Ainda assim, todos olhavam a professora esperando a
resposta enquanto ela piscava para mim.
- Eu não sei
como te explicar isso. Não é assim tão simples, meu anjo. - ela engoliu com
dificuldade - Pense que os nobres de Portugal não gostariam de deixar de ganhar
seus impostos para dar para Napoleão. E, não necessariamente seriam eles a
morrer nas guerras.
Aquela resposta
não tinha me convencido ainda. A professora Marilúcia fez aquela cara que os
adultos fazem quando querem nos dizer que somos jovens demais para entender.
Eu acabei
balançando a cabeça concordando, mas acabei deixando escapar pelos lábios:
- A verdade é
que sempre queremos ter mais do que precisamos, sem nos preocuparmos que o
nosso ‘mais’ pode fazer falta para alguém.
A professora ajeitou
a franja para o lado procurando disfarçar as lágrimas nos olhos enquanto me
olhava, como se eu tivesse dito algo brilhante e emocionante. Passei o resto do
dia tentando entender o que tinha de tão surpreendente assim.
A verdade
verdadeira é que muita coisa mudou lá em casa nos últimos dias. Algumas
mudanças me deixaram felizes, enquanto outras não.
Há três semanas
atrás eu sentia falta da minha irmã, das nossas brincadeiras, de como ela se
importava comigo. Ela só queria saber de proibir minha entrada no seu quarto,
que antes era nosso quarto de brinquedos. Quando chegava em casa, corria para o
computador ou para o telefone para conversar com a Joana e as outras meninas da
sala.
Ano passado,
papai tentou me consolar de muitas formas quando Cat ligou dizendo que iria
dormir na casa da Carol e que não iria participar da minha festinha de aniversário.
Ela sequer me deu parabéns quando saímos para o colégio de manhã, porque ela
nem tinha se lembrado.
Minha irmã era
grande demais para gostar de passar o tempo comigo, mesmo que fosse para pintar
minhas unhas enquanto escutávamos música. Ela roubou um pouco de algo que era
muito para mim e deu para alguém, só que esse alguém já tinha o suficiente para
se importar com a atenção que me foi roubada.
Agora, minha
irmã parece sempre sozinha e triste. Ela bate na minha porta e deita no meu
colo para chorar sem dizer uma única palavra. Eu penteio o cabelo dela com os
dedos, os cabelos que eu sempre invejei, pensando que ela não diz nada por
achar que sou criança demais para entender.
Eu sou criança
demais mesmo. Criança demais para cuidar dela, criança demais para perder
minhas brincadeiras, criança demais para me preocupar. Só que ela se engana
achando que eu não entendo. É claro que eu sei que ela gostava do Mateus muito,
do mesmo jeito que a mamãe e o papai se gostam (e que eu espero só gostar
quando estiver bem velha). E sei que ela sente saudades da Joana. Acho que mais
do que sentiria se eu parasse de falar com ela (só que nesse caso, ela que
parou de falar com a Joana). Eu fico triste com isso, e com raiva também.
A Joana era como
alguém da minha família e, por causa desse menino, ela fez a Cat sofrer e está
estragando minha amizade com o Lucas. Agora só brincamos no colégio, porque
quando estamos na minha casa, minha irmã se tranca no quarto chorando e deixa o
Lucas se sentindo culpado. Quando estou na casa dele, Joana fica insinuando que
Catherine é ridícula, que está com inveja dela, que deveria estar feliz pela
sua felicidade. E eu sinto vontade de gritar com a Joana.
O sinal bateu e eu me despedi do
Lucas e da Camile, porque agora era ela que pegava carona com a Marise. Eu e
Catherine voltávamos com o pai da Renata.
Pedi para encontrar a Re no portão
porque precisava ir ao banheiro. Quando eu estava saindo de lá explicando para
a Julinha o trabalho de inglês, vi algo que me deu vontade de vomitar.
A Joana estava beijando o
Henrique. Na boca.
E provavelmente de língua. Eca!
No carro, vendo a Cat tentar ser
simpática com o Rodolfo, pai da Re, enquanto ele fala sobre começar a pensar no
vestibular, tenho vontade de chorar.
Porque a Joana teve que tirar de
tanta gente algo que nos faz falta, mas que não acrescentou nada para ela?
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Letice é uma personagem criada por mim. Ela é uma menina de 9 anos que é cheia de questionamentos e apronta muito.
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